Lampião e Lancelote: a noção de entrelugar no tempo e no espaço

A viajem aqui proposta parte de um lugar em comum para nós, ou melhor, de dois lugares: a literatura e o “território” nordestino. Entretanto, para nos acompanhar em nosso itinerário, convido o leitor a libertar-se de algumas demarcações hierárquicas e limitadoras. Uma delas é a noção restrita de literatura como sendo um texto escrito destinado magioritariamente aos adultos; a outra é a compreensão de Nordeste reduzida à sua delimitação geográfica. O Nordeste do qual falo está no imaginário e, para esta leitura, é aquele constituído através das imagens criadas pelo livro infantojuvenil Lampião e Lancelote (2006), do escritor e ilustrador Fernando Vilela. Dessa maneira, o ponto de partida é identificável, mas não é estático. Contudo, a história não se restringe ao ambiente nordestino. No livro, a figura de Lampião e seu bando, por intermédio de uma espécie de fenda no tempo-espaço, confronta-se com um personagem inusitado: o opositor de Virgulino surge do passado, na forma de Lancelote, um dos Cavaleiros da Távola Redonda da lenda do Rei Artur.

A principal característica da obra é a intertextualidade, a qual se realiza a partir de um jogo de entrecruzamentos e de quebra de fronteiras, fazendo surgir um novo lugar, ou um novo texto. Ou seja, o limiar em que as “famosas” personagens se cruzam, possibilita a constituição de outra narrativa para histórias já contadas, e os pontos de contato que acontecem entre elas geram um produto (ou discurso) que não é um nem outro, mas é também tudo isso.

No livro, os recursos linguísticos e imagéticos ora provém da literatura de cordel, remetendo ao ambiente nordestino do cangaço, ora se aproximam de uma linguagem mais “rebuscada”, para (re)apresentar o cavaleiro real. O processo de desleitura e/ou releitura das personagens que se dá na obra constrói um entrelugar, no qual surge algo novo. Esse “novo” texto é constituído a partir de um mosaico de citações, espaço no qual são mescladas referências literárias com narrativas históricas e aspectos da vida contemporânea. Ou seja, como um texto esponja, que absorve (seja consciente e/ou inconscientemente) outros textos. Assim, realiza-se um produto que subverte a ultrapassada noção de originalidade.

É possível captar um “sentido” (ou objetivo) da parte do autor em transmitir uma mensagem, entretanto, partindo da ideia da morte do autor, talvez seja importante ter em mente as possibilidades interpretativas do texto, assim como – no caso deste trabalho comparativo – considerar as diferenças e o “novo lugar” constituído. Lugar esse no qual a a noção de influência e semelhança perdem espaço para o(s) processo(s) de desleitura e releitura, os quais, também, desconstroem a noção de autoridade do autor, transferindo esse “poder” para o leitor que passa a ser muito relevante para a construção do sentido.

Ainda em relação à construção de sentidos, o livro, por sua vez, se vale tanto dos recursos estilísticos da escrita quanto dos recursos visuais. As ilustrações de Vilela se alternam entre o abuso dos tons de prata, para representar Lancelot e o mundo ao qual a personagem pertence, e dos tons de marrom, para remeter ao couro, muito utilizado pelos cangaceiros, como Lampião e o seu bando. Além disso, os tons de marrom também aludem ao terreno seco do sertão, muito presente na região nordestina. Assim, Vilela faz uso das ilustrações e do texto verbal, a fim de evidenciar as distinções entre as personagens, seus mundos e suas culturas.

A partir do conceito de entrelugar   proposto por Silviano Santiago — o qual contribuiu com os estudos comparatistas para se pensar as produções latino-americanas, ao desconstruir a ideia de superioridade europeia — podemos ler Lampião e Lancelote como exemplo pertinente desse “espaço” que ocupa o discurso da América Latina. Para o teórico, a noção se refere ao limiar ocupado pela produção (especialmente literária) do nosso continente, opondo-se à lógica colonial, eurocentrista que “[…] reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio […]” (SANTIAGO, 2000, p. 18). Santiago percebe entrelugar como espaço dialógico e interativo onde a miscigenação se faz presente, e, dessa maneira, não pode ser do europeu, nem do nativo, e ainda assim será de ambas as partes (e/ou de outras).

Santiago explana que encarar nossa produção latina como mera cópia (não só das obras europeias, como também das estadunidenses, que nos influenciam com sua produção de/para/em massa) é um equívoco. E, como resposta para essa afirmação infundada (no caso dos que subjugam nosso continente), esse trabalho, modestamente, aponta, na obra em questão,  pontos que desmontem tais injúrias. Contudo, o objetivo é um tanto quanto pretensioso, pois tem como objeto de leitura uma produção que está distante de ser considerada canônica, uma vez que o livro em questão é classificado como infantojuvenil,  gênero considerado, na maioria das vezes, como “literatura menor” pela Academia.

Em relação ao livro, a estética das ilustrações funciona como canal direto entre os mundos abordados e transporta o leitor até eles. Neste duelo, distintas culturas e visões de mundo são confrontadas, e os desenhos de Fernando Vilela contribuem para a narrativa e composição da história, na qual palavras e imagens dialogam de forma a se complementarem, como uma espécie de poema concreto.

A disputa entre os temíveis guerreiros se dá através de poesia, da mescla das duas culturas, da fusão de linguagens. Tudo de forma utópica e envolvente. Europa e Sertão se juntam para afiar suas particularidades. A estrutura do texto segue um padrão parecido ao da letra da música “O encontro de Lampião com Eike Batista”, da banda El Efecto, na qual se apresenta um cordel cheio de rimas e humor. A linguagem mistura além de tons repentes e cordel, toques de novela de cavalaria, como forma de (re)apresentar os dois universos.

 […]Uns hômi tudo de preto / Peste vinda do futuro  / Que pra não olhar no olho / Veste óculos escuro / Um se aprochegou do bando / Grande pinta de artista / Disse com ar de desprezo / Muito seco e elitista: / “-Calangada arreda o pé / Que agora isso é de Eike Batista!” […]”Tu pode comprar São Paulo / E o Rio de Janeiro / Foto em capa de revista / Por causa do teu dinheiro / Ter obra no mundo inteiro / Petróleo, mineração / Mas aqui nesse pedaço / Quem manda é o rei do cangaço / Virgulino, lampião!”  (El Efecto, 2014).

Enquanto o foco da música do El Efecto é a crítica social —  trazendo temas como privatização, latifúndio e capitalismo —  no livro de Vilela, o que prevalece é o destaque à diversidade cultural; é a brincadeira de passear entre dois mundos distintos, com costumes diferentes. Dessa maneira, o autor equipara e une elementos desses dois mundos, como a linguagem, os objetos de lutas, as cores, e até mesmo as personalidades dos dois guerreiros, que travam uma bela disputa através da palavra.

Dessa forma, podemos pensar, subsidiados por Santiago, o quão importante é a nossa origem, a qual foi, em parte, apagada pelos invasores coloniais. Ademais, também é válido pensar em como essa questão reflete nas nossas produções, as quais foram contaminadas pela cultura imposta por esses colonizadores (a cultura deles, por sua vez, também foi “contaminada” pela nossa), gerando outro discurso, o qual não é só o nosso (latino) como também não é apenas o do colonizador. Portanto, o livro promove uma mistura de elementos que insere a cultura nordestina em contexto inusitado: mesclando a linguagem de cordel, o repente, o vocabulário peculiar sertanejo e seus traços de oralidade com graça. Realiza, também, uma fusão de textos que enriqueceram a obra como um todo: ao misturar letras e imagens, história e política, ficção e realidade, cores e rimas. Com isso, é possível pensar a obra analisada (mesmo que minimamente), como literatura anfíbia, que não pertence nem a um lugar, nem a outro e, ainda assim, pertence a todos esses lugares. Tal como Santiago, ela pode nos estimular a perceber a produção latina como o próprio conceito de literatura comparada: um lugar e um não lugar para as quais as fronteiras, ainda que existentes, não são tão delimitadas e rígidas.


REFERÊNCIAS

EFECTO, El. O encontro de Lampião com Eike Batista. 2014. Disponível em:<https://www.letras.mus.br/el efecto/O encontro de Lampião com Eike Batista/> Acesso em: 06 de jul. 2017.

HOISEL, Evelina. A disseminação dos limiares nos discursos da contemporaneidade. In: Culturas, contextos e discurso. Limiares críticos do comparativismo. Porto Alegre: Editora da Universidade do Rio Grande do Sul, 1999. P.5867.

MARQUES, Reinaldo, BITTENCOURT, Gilda Neves. Limiares críticos. Ensaios de literatura comparada. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: EDUSP, 2000.

SANTIAGO. Silviano. O entrelugar do discurso latino americanoEça de Queirós, autor de Bovary. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva; Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 2000.

VILELA, Fernando. Lampião e Lancelote. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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