“Tia Margarida vai a Brasília: história para alguém contar às crianças” Jayme Martins (1959)

“Quase todo gesto infantil significa uma ordem e um sinal em um meio para o qual só raramente homens geniais descortinam uma vista.”

(Walter Benjamin, 1928)

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Capa do livro “Tia Margarida vai a Brasília: história para alguém contar às crianças”, de Jayme Martins (1959)

Enquanto a Novíssima Capital do país erguia suas colunas delgadas e elegantes, de formas e estruturas também novíssimas, sua história já estava sendo construída e contada de forma assumidamente ficcional. Em 1959, um ano antes da inauguração de Brasília, era lançado o livro de história infantil Tia Margarida vai a Brasília: história para alguém contar às crianças, de Jayme Martins, numa correlação óbvia entre a oficialização da história e o “desenvolvimento”, proposto como programa nacional de governo. Mas estamos diante de uma literatura que é história ou de uma fonte documental para se pensar o próprio curso da história? [1]

É importante comparar o que se intenciona com esta história e o que ela realmente é. Ao ser anunciado pela Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), antes do seu lançamento, o livro propunha contar as “histórias das belezas e grandezas de nossa terra, enaltecendo-a, e exaltando os feitos heroicos daqueles que derramaram o seu sangue e o seu suor para que ela sempre sobrevivesse firme, bela e altaneira no coração de seus filhos” (NOVACAP, 1958 e 1959). O livro, entretanto, acaba pronunciando outras questões que merecem ser levantadas e postas em relação a partir dessas diferenças entre o discurso e o próprio objeto.

Perguntemo-nos o porquê da escolha das crianças como público dessa história do país, ainda tão recente. Percebemos, sim, uma garantia da construção de narrativas daquele movimento e daquele momento reconhecidamente “histórico”, e que culminou com o fato de a cidade ter recebido da Unesco o Título de Patrimônio Cultural da Humanidade alguns anos após a sua inauguração. Brasília é, também, a inauguração de um país no cenário internacional, por isso esse desejo tão urgente de afirmá-la na sua importância, evitando o risco de uma escrita da sua história a posteriori. Para além de saber como contar ou quais são as ferramentas para fazê-lo, é preciso, antes de qualquer coisa, perguntar quem conta. Em relação ao autor do livro, sabemos muito pouco. Considerando que, somente a partir daquela obra, ele “se incorporou aos escritores patrícios, como Monteiro Lobato” (NOVACAP, 1958 e 1959), podemos deduzir que não se tratava, naquele momento, de uma figura importante ou reconhecida no cenário da literatura infantil brasileira. Trata-se de uma figura praticamente sem registro, mas era preciso garantir este lugar de reconhecimento antes mesmo de tornar disponível aquela história de ficção.

A instituição por trás desta história é, na verdade, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Precisamos, portanto, desconfiar da nossa própria história e, sobretudo, de quem a fabrica. Num trecho do livro, encontramos a defesa desta instituição, responsável por fabricar também os números da nação e suas bases estatísticas, em pleno governo da máxima “50 anos em 5”:

– E o IBGE foi organizado pelo Presidente Getúlio Vargas?

– Foi. Organizaram-se, nessa época, diversas instituições de grande valor.

– Em que ano, pai?

– O IBGE, em 1945. Daí pra cá, o IBGE teve a incumbência de estudar a mudança da Capital. Em 1946, criou-se nova comissão para fazer os estudos definitivos da localização. A chefia dessa Comissão foi entregue ao General Djalma Poli Coelho, que era acompanhado por 11 engenheiros. (MARTINS, 1959, p. 119-120)


Parece, no mínimo, divergente que números oficiais e histórias para crianças sejam produzidos num mesmo lugar. Aliás, o livro para crianças está repleto de fatos aparentemente opostos. A própria tentativa de afirmação de uma história positivista, legitimada através de um livro de ficção. Nesta construção que vai em defesa de uma consciência patriótica, sobretudo nas crianças, dois personagens principais representam estas ambiguidades: de um lado, Margarida, a tia do interior de Minas que “ainda usa coque na cabeça” e abomina as tecnologias modernas, mas que é a favor do progresso da Nação e, portanto, da mudança da Capital do país; e, do outro, Altamirando, seu cunhado, funcionário público carioca, “desleal” à Nação, por ser contra a mudança da capital. A partir destas ambivalências, o livro permite que encontremos rupturas e descontinuidades que merecem ser exploradas. Questões que são tratadas superficialmente, outras não ditas, mas que nos fazem perguntar o que está por trás da própria história contada. No próprio ato de narrar Brasília, desde as primeiras tentativas de mudança da Capital para o centro do país, o autor reforça a imagem dos personagens já consagrados da história, ao passo que aponta outras possibilidades de compreensão deste processo, sobretudo em relação aos diversos outros atores e missões que pretenderam a mudança da capital. Quanto às outras histórias possíveis de Brasília, dos diversos projetos de cidade [2], dos seus construtores, estes praticamente não são mencionados no livro.

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Projeto para o concurso da Nova Capital: Liliana Guedes, Domingos de Azevedo, Carlos Milan e Joaquim Guedes: “duas escalas de cidade, uma para o adulto e outra para a criança”

Há, ainda, uma disputa entre esta tentativa de instaurar um regime de verdade e a forma como isto se desenvolve na história. Tia Margarida sonha com um tribunal, onde o presidente Juscelino Kubitschek era julgado pelo “crime” de mudar a Capital do Rio de Janeiro para o centro do país. Participam do júri figuras importantes, como Tiradentes e José Bonifácio. Junto com seu sobrinho Afonso, Tia Margarida fica incumbida de encontrar a verdadeira história da Capital, para então “inocentar” o presidente. Nota-se como esta relação entre o evento do julgamento da verdade – como uma confirmação baseada na decisão final de alguém, não de todos – se dá através de um sonho. O desenrolar dos fatos acontece nesta mistura de tempos e lugares distintos, entre a realidade e o sonho, dentro da própria ficção, produzindo a história oficial.

– No sonho, ele não disse nada, tenho certeza.

– Então está difícil.

– Olhe, Afonso. Penso que nós podemos imaginar o que Tiradentes vai dizer, qual a sentença que vai proferir.

– Não sei, não, tia.

– Quando duas pessoas pensam igual, falam também igual, procedem da mesma forma, preferem as mesmas coisas, gostam até de estar sempre juntos, não é? (MARTINS, 1959, p. 165)


Notamos aqui o entrelaçamento de tempos, mas é para o presente que a história se volta; numa valorização do presente e, por consequência, também do futuro (da ideia de Nação), mas através de histórias e memórias do passado. O presente valoriza o futuro, e a memória não é acesso ao passado, mas construção do próprio futuro. Tudo isso, interpretado por uma criança, com a ajuda da sua tia, que trava diálogos com José Bonifácio, Tiradentes e Juscelino em seus sonhos.

Nesta história do “Brasil gigante”, contada a partir de uma Brasília ainda criança, a potência fabular está presente na narrativa baseada em possibilidades de construir outras histórias, outros julgamentos de verdade. Ao final do livro, entretanto, é um recorte de jornal contendo o trecho de um discurso do próprio presidente Juscelino, que a tia encontra na sua caixa de “segredos”, que fecha a história, pondo fim aos sonhos, às suas possibilidades, aos embates dos diferentes discursos travados entre os personagens.

Tia Margarida puxa a maleta e retira a folha do jornal onde marca os tópicos que, sem dúvida, acompanhariam a sentença que Tiradentes havia de proferir.

– Ouça, Afonso.

– Pode ler, tia.

– Defrontando o mártir como estamos agora, com o pensamento nesse que teve alma heróica e forte, que hoje aqui celebramos, força é confessar que nem todos trabalham para construir o Brasil, fazê-lo erguer-se e caminhar na direção de seu destino. Mal o Brasil começa a empreender a sua viagem e eis que a alguns atormenta, mais do que se tempestade fosse, a calmaria, o desânimo, o torpor, o desengano, tão mais condenáveis quanto nascidos em um povo que não teve verdadeira experiência da amargura, na nação que não atingiu sua plenitude, que não disse definitivamente ao que vinha no concerto universal e não deu seu recado ao mundo. […] Diante de nós está o Brasil, e o Brasil é uma incumbência enorme, uma tarefa ilimitada a que se devem se dedicar sucessivamente gerações e gerações. Não temos direito ao desespero branco, aos desânimos crepusculares, ou de nos deixarmos vencer pelas tendências negativas; não podemos ser tristes enquanto não tirarmos proveito do nosso patrimônio, da herança que nos legaram os titãs que forjaram a unidade nacional, no meio de asperezas e dificuldades sem conta, assolados pelo desconforto. Não merecemos o Brasil se não tivermos fé. Não seremos nada sem confiar e esperar.

– Gostou?

– Ó tia, a senhora sabe que eu gosto de tudo que a senhora lê pra mim. E quando o que a senhora lê é mesmo de seu agrado, até o que eu não entendo fica bonito. (MARTINS, 1959, p. 167-169)


Podemos continuar a penetrar na nossa história como o adulto na cidade desconhecida ou como a criança nas suas brincadeiras e fabulações do mundo, para se perder num labirinto de outras (e sempre novas) histórias ou de possíveis leituras. Devemos descobrir brechas que nos levem a viagens fantásticas e surpreendentes, como fazem as crianças.


NOTAS

[1] Robert Darton (1986, p. 34) propõe o uso dos contos como documentos históricos, numa busca por “situar o homem comum do século XVIII” e ler os contos a partir da perspectiva de que eles têm uma história. Dentro destas histórias infantis, questões extremamente modernas e realistas, como a mortalidade adulta e infantil, o domínio da natureza, o controle de natalidade, táticas de sobrevivência, a fome e o infanticídio, vão além da fantasia do “Era uma vez, num mundo tão, tão distante…”.

[2] Essas Brasílias possíveis e fabuladas também aparecem nas versões pouco conhecidas dos projetos para o concurso da Nova Capital, em 1956: Liliana Guedes, Domingos de Azevedo, Carlos Milan e Joaquim Guedes propunham no projeto para a capital duas escalas de cidade, uma para o adulto e outra para a criança, com zoneamento a partir de diferentes idades. As crianças de até sete anos poderiam ficar somente nas partes residenciais, onde também ficaria toda a estrutura de lazer e educação. A Proposta apresentada não foi reconhecida como finalista entre os projetos vencedores, mas destacou-se dentre os demais planos apresentados, levando a Paulo Antunes Ribeiro, então membro do Júri, a recusar-se associar ao julgamento dos projetos vencedores. Para saber mais sobre estes e os demais projetos para Brasília, ver Lopes (2017).


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter [1928]. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. 2 Ed. São Paulo: Duas Cidades, 2009.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

LOPES, Dilton. Concurso para o Plano Piloto de Brasília – Joaquim Guedes. Disponível em: <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1624&langVerbete=pt > . Acesso em: 07 set. 2017.

MARTINS, Jayme. Tia Margarida vai a Brasília: História para alguém contar às crianças. Rio de Janeiro: Edições Buriti, 1959.

NOVACAP. Revista “Brasília”, edições de março de 1958 e 1959 (números 15 e 27, respectivamente).

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